Sil Curiati é paulistana, amante do Rio,
ex-moradora de Miami, de volta à terra da garoa.
Curte comes e bebes, é nos jantares que dá em casa que ouve os maiores
absurdos publicados neste blog.
Vive com música nos ouvidos e nos pés.
Um dia será dançarina e fará
propaganda nas horas vagas.
Vive sonhando acordada, também.
30 Carnavais, mais de 120 cidades no currículo.
É como o periquito dela, que tristonho, dorme em seu ombro coberto por um pedaço de pano. Não tem atitude de periquito. Não tem olhar de periquito. Não tem vontade de periquito. Tem é uma carência, um chorinho preso na garganta, uma saudade do rabinho abanando. "Ah, sim... já foi um cachorro em outra vida", diriam. Um cãozinho bem tratado pela vizinhança, amigo da garotada e feliz da vida. Agora estava preso naquele corpinho verde e frágil, nem latir podia. Se aconchegava, então, no ombro da dona. Para sentir-se mais parte da família, como só os cães sentem. É como aquele senhor, negro e barrigudo, que se estático em uma foto, seria confundido com um trabalhador da roça de mãos calejadas e pele judiada pelo sol forte. Alguns cabelos brancos já surgiam, mostrando a idade mais apurada que a aparência, que insistiu em parar de mudar, como só acontece com personagens de livros. Mas não tem atitude de trabalhador rural. Não tem gestos de trabalhador rural. Não tem vontade de empunhar uma ferramenta. Atravessou a rua em dois saltos, e quase pude ver as pontas dos pés no ar, esticadas, e os calcanhares se tocando na troca do passo. Os braços foram leves, um ao céu, outro à terra, e naquele momento, quando sorriu com seu movimento, a barriga dura e grande parece ter sumido. Eu, pelo menos, não a encontrei. Foi quando pensei "ah, sim... já foi bailarina em outra vida". E me lembrei do periquito.
Na sua frente, eu odeio a raiva que retoma forças e aperta meu estômago. E este ódio potencializa toda aquela raiva, me faz me odiar por isso também. Mas é em contato com ela que compreendo sua verdadeira natureza: odeio sentir, então nego. E fica esta sementinha germinando, e eu amarrando seus galhos jovens aos outros velhos e podres para que eles tomem a forma que eu quiser e não me cutuquem mais. É na sua frente que eu sou meu máximo. Porque sou obrigada a reprimir a minha dor máxima, minha tristeza máxima, minha raiva máxima, e meu amor máximo. Só o maior amor do mundo tem a força capaz de abafar a fumaça do que se queimou, de segurar a tesoura aberta e impedí-la de cruzar suas metades e cortar mais um pedacinho do tecido que bordei aqui dentro. Aos que testaram meus limites e me fizeram reconhecer meu máximo, só tenho gratidão, nada mais.